Origem da Festa do Cavalo Nóia


A coordenadora Alvira reis e diretora Débora Regina Misael
Ensaio fotográfico com Adriano Tourin (Cavaleiro por dois anos)
e alunos da Escola Lauro nas pedras da quadra

"Cavalo Nóia" é uma festa que se tornou tradição na Vila Missionária, bairro da região sul de São Paulo. O bloco ou cordão de "carnaval fora de época", como dizem, existe desde 2000. Iniciou-se com 300 alunos da escola Professor Dr. Lauro Pereira Travassos. Hoje, estima-se a participação de mais de 1000 brincantes, envolvendo alunos, pais e moradores da região.

Voltando de férias, no final de 1998, a diretora soube que a comunidade havia derrubado o muro da escola por conta da morte de um cavalo. Contam os moradores que dentre os jogadores que estavam utilizando a quadra no final de semana, um, meio embriagado, se invocou com o cavalo e deu-lhe um tiro, “bem no meio da testa do infeliz, lá nele” . Chamaram o corpo de bombeiros, polícia e tudo quanto foi gente para sepultar o defunto. Porém, tem aquela história: para tirar o animal do terreno da escola haveria um gasto e, além disso, era necessário arrumar um local propício para o sepultamento. O dono do cavalo, a essas alturas, já estava longe. Quando acontece do cavalo ficar doente, ele desaparece, pois sabe que vai ter de arcar com os problemas.

A escola, desamparada de verbas, não tinha de onde arrancar dinheiro para cobrir os gastos. Problema sério. Tem que pagar taxas e aquelas coisas todas... E o responsável ainda some. Mas essa briga já vinha de longe. “Há anos, esse senhor dono dos cavalos invade a escola para colocar os animais para pastarem sem permissão", desabafa a diretora. Onde arrumar um terreno que permita o sepultamento de cavalo? Quem fará o serviço? Resultado, a prefeitura teve que intervir. Trouxeram um trator e puseram o muro da escola abaixo. Cavaram uma vala próxima à quadra e despejaram o cavalo, duro de tão morto.

Enterrado o primeiro cavalo, a história continua. Da segunda vez, foi no ano de 2000. Era segunda-feira, a bem da verdade, no final de 1999. Narra a diretora: “Cheguei cedo e vi o cavalo doente, deitado na porta de entrada da escola. Uma sujeira de dar enjôo" . A comunidade trouxera restos de comida e deram para o bicho. Houve quem fora ao Sacolão trazer parte da xepa para o enfermo.

E o cavalo ali, angustiado, morre-mas-não-morre. E aquela bagunça triste, excrementos, restos de alimentos, cobertores e o diabo. Tudo ali pra quem quisesse ver. Testemunhas oculares disseram que o coitado estava pastando na parte alta do terreno e, conforme foi descer a rampa, escorregou e quebrou a perna. Puxaram o animal para cima, mas não tinha mais jeito: “perna quebrada é morte na certa”. E, antes de qualquer providência hospitalar, o cavalo agonizou e morreu. Novamente, a mesma correria.

Dessa vez a prefeitura veio e não precisou derrubar nenhum muro, entraram pela frente. Providenciaram uma cova bem profunda no jardim, juntaram uns dez ou quinze homens e puxaram o dito do cavalo pela corda. E puxa dali, e puxa de lá... E nessa brincadeira, ficamos o dia inteiro para resolver essas pendengas. “Você fica no vai-e-vem da coisa, até o Instituto de Zoonoses vir... Arranjar gente pra limpar tudo, a gente perde o dia inteiro. É um Deus-nos-acuda!”

Por último, o terceiro. O que atropelaram perto da Casa das Madres. O moço que atropelou deu 400 reais ao dono para reparar o acidente. Acontece que o dono do cavalo, de sacanagem, embolsou a grana, comprou um novo cavalo e nem pestanejou, deixou o seqüelado de presente para a diretora da escola. Um presente de grego, ri a diretora.

Puseram o acidentado no terreno da escola, gemendo de dor. A comunidade, compadecida dos gemidos, deu os primeiros socorros. Improvisaram uma tala de cano de PVC. E outra vez a história se repete. Sacolão, restos de alimentos, bacias de água, ervas maceradas, figas e outras estripulias. E o paciente ali, estendido bem perto do guichê. Só para lembrar, esse episódio ocorreu no final de semana. A própria comunidade se encarregou de chamar o Instituto de Zoonoses. “Olha, é um cavalo de perna quebrada...” No domingo mesmo chegaram os técnicos com enorme injeção letal para sacrificar o cavalo, pois "quando é perna quebrada tem que sacrificar”. A comunidade, cheia de dó, não deixou os homens fazerem o trabalho. “Aqui vocês não vão matar cavalo nenhum, raça de miseráveis!”. A equipe saiu da Vila debaixo de tiros.

Sobrou pra quem resolver o pepino? Para a direção da escola. Na segunda pela manhã, quando a diretora chegou, os zés-povinhos da comunidade vieram falar suas resenhas. De um lado, a diretora explicava que era impossível manter o cavalo hospedado na escola. Do outro, a comunidade, que de maneira nenhuma deixaria que o cavalo fosse assassinado diante de seus olhos. Um nó dos diabos. Depois de muita falação, entraram num acordo. A diretora intermediou com o Instituto de Zoonoses. O veterinário estava irredutível: “Minha senhora, não voltaremos aí nem à força! Esses malucos nos receberam de revólver em punho. Quem é doido de voltar?”

O homem estava com muito medo daquela história toda. A mulher insistiu até que eles concordaram. “Olha, dona, o que a gente pode fazer é verificar o estado do cavalo. Conforme a situação, arrumar uma faculdade de veterinária para cuidar dele. Agora, se a perna estiver realmente quebrada, não tem jeito, tem que sacrificar mesmo”. A diretora volta para a comunidade e explica tudo de novo. O povo aceita. E vem aquela burocracia toda. E muitos equívocos e erros de comunicação. A senhora tem que nos garantir que o cavalo suba no caminhão com as próprias pernas. A diretora se irrita. Resultado: à tardinha, vieram e levaram o cavalo embora. Foi uma verdadeira piada. “O pior é que ainda zombam de mim, dizem que o meu cargo mudou, que agora virei assistente social de cavalo, pode?", contou entre risos a diretora.


Entrevista cedida pela diretora Débora Regina Misael ao professor Jacson Matos para desenvolvimento do projeto Artividades.

Comentários

  1. Prezado professor Jacson Matos, tem coisas que são para a eternidade, dentre elas trabalhos como esse. "Tudo vale a pena quando a alma não é pequena", Um abraço.Professora Alvira Soares Reis (Mestre em Políticas Sociais pela UNICSUL)

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  2. É coisa indescritível, virei teatro de boneco. Foi emocionante ouvir e ver as pessoas falarem da tua historia. Me sinto importante, rs. Obrigada a todos os produtores e atores do teatro de boneca onde dona Alvira conta sua versão sobre a história do cavalo noia. Mais uma vez o Professor e pesquisador Jacson mostra aos profissionais em educação como se faz. Parabéns a todos. Muito obrigada por contarem parte de minha história de vida.
    Professora Alvira Soares Rêis, mestre em Políticas Sociais.

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