SATS - ARTES DO CORPO CAVALO NÓIA - HIBRIDISMO E MITOGÊNESE NO MEIO URBANO


LANÇAMENTO DA REVISTA



CEU TRÊS LAGOS: DEBATE
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Existem pessoas que habitam uma nação, uma cultura. E existem pessoas que habitam seu próprio corpo. São os viajantes da velocidade, um espaço e um tempo que não se confundem com a paisagem e a hora do país atravessado. Pode-se permanecer fisicamente durante meses e anos no mesmo lugar, e ser, no entanto, um “viajante da velocidade”, que atravessa lugares e culturas longínquas, milhares de anos e quilômetros, em sincronia com pensamentos e reações de homens distantes pela pele e pela história. A velocidade é uma dimensão pessoal que não se deixa medir por instrumentos científicos, ainda que a ciência e o progresso tenham origem nesta dimensão imensurável.


Eugenio Barba


Criação do Mito

Desde os tempos mais longínquos o homem cria símbolos para de alguma forma refletir sua condição. Muitos admitem que tal processo é fruto de uma elaborada função psicológica; outros, porém, acreditam que os deuses estão por ai, olhando-nos e avaliando nossa conduta.

Com o desenvolvimento das teorias em torno da cultura, os estudos da religião e o advento da psicanálise apresentam hoje um conjunto de elementos para adentrar os confins do inconsciente e observar, mesmo que veladamente, segredos há muito tempo guardados a sete chaves. Mesmo assim, “nossa psique ainda é sensível aos mitogemas – ‘tijolos’ com que as mitologias são feitas. Esses elementos, constituindo a matéria da psique, estão longe de ser materiais de construção inertes; ao contrário, assim como o ARN e o ADN, estruturam os processos vivos dos quais participam. E nisso está a premência de nossa aproximação consciente do mundo mítico” (Larsen, 1991). Quando nos deparamos com uma manifestação cultural, sabemos que se trata de uma experiência humana que nos está sendo legada desde um tempo muito distante. Mesmo tratando-se de experiência de certa forma conhecida, carrega um significado mais profundo. Mas como proceder quando nos deparamos com uma manifestação recém-nascida? Como nos comportar antropologicamente sem cair em maneirismos?

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Nos estudos culturais está sempre presente certa distância do fato primeiro da narrativa, fundadora. As experiências passam a ser tratadas como objetos arqueológicos, que têm fundamentos em determinada época histórica, bastando, então entender este momento cultural e nele depositar todas as esperanças. No entanto, o contato do pesquisador com a cultura em questão também é um grande desafio; fala-se em "não intervenção", na possibilidade do pesquisador "entrar" na cultura, ao invés de interpretá-la "de fora". Sendo assim, ficamos numa situação ao mesmo tempo confortável e perigosa. Mas como é estar realmente "dentro" de uma outra cultura que é nosso objeto de pesquisa? Pois o tema “Cavalo Nóia” não é uma experiência perdida na história: é uma manifestação atual, que acabou de "sair do forno", e que está intrinsecamente ligada a nós e à nossa contemporaneidade.

O Cavalo Nóia pode nos dar indícios de como manifestações desse gênero nasceram em tempos arcaicos, e pode ser uma lupa sobre nossa história atual. Através de suas peculiaridades talvez possamos, também, entender um pouco melhor o próprio passado. As folias tradicionais, cujo protótipo é o cortejo e cujas heranças ontológicas são claras, tiveram suas origens em situações semelhantes (possivelmente, as mesmas).

Quando falamos em morte automaticamente nos remetemos aos antigos ritos e mistérios iniciáticos nos quais a comunidade tomava consciência de sua finitude através de sua motivação no coletivo. A carga moral dada à idéia (mesmo que inconsciente) de morte possibilita ao indivíduo uma oportunidade de amadurecimento e maior capacidade de interagição com o meio. A morte, então, é a alegoria da vida: aprendendo a morrer vive-se melhor. Ou, tendo-se uma vida sob determinada postura ter-se-ia uma morte mais agradável, uma "passagem" mais tranqüila.

Com essa perspectiva podemos abordar o mito primeiro da criação. Onde há morte houve vida, e esta vida teve seu nascimento em determinado momento. A festa é, em si mesma, símbolo desse feito. No número anterior desta revista, tratamos do Reisado, manifestação tradicional do Brasil. Como vimos ali, “é nisso que reside sua principal característica: como criadora de um espaço sagrado, extra-cotidiano, ativador dos arquétipos que permeiam nosso imaginário, a Folia representa uma manifestação, de origem muito primitiva, de reatualização do mundo sagrado. Como explica Mircea Eliade, 'o homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano (...) a partir da mais elementar hierofania – por exemplo, da manifestação do sagrado num objeto qualquer' (como o estandarte dos foliões) 'até a hierofania suprema, que é, para um cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de continuidade. Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestação de algo da ‘ordem do diferente’ – de uma realidade que não pertence ao nosso mundo – em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo ‘natural’, profano. Quando falamos em 'fé', portanto, estamos diante de um re-fundar do mundo" (Eliade, 1992).

Na Folia de Reis estamos lidando com um baú arquetípico, de símbolos milenares e da própria cultura ocidental baseada no cristianismo. No entanto, também um fenômeno contemporâneo como o Cavalo Nóia vem reatualizar tais símbolos a partir de conteúdos muito precisos relativos à condição dos moradores locais, às circunstâncias em que a escola está inserida e ao imaginário daquela coletividade, criando uma identidade contemporânea e uma metáfora sobre o ensino público e o espaço escolar.

A escola deixa de ser um ambiente onde se espera um modelo de educação em que o aluno recebe informação passivamente e torna-se um espaço de imanência em que o conhecimento integra-se à vida da comunidade. Já não são os grandes vultos históricos oficiais que são valorizados como objeto de conhecimento, mas sim a história cotidiana das próprias pessoas. Embora isso possa parecer ingênuo, tal inversão é na verdade um processo de reintegração simbólica, após séculos de opressão por parte de uma cultura dominante que nos impõe seu saber como absoluto.

Aqui temos também uma abordagem inteiramente mitológica da sátira e da apoteose. A imagem do Cavalo Nóia como um bloco carnavalesco é ao mesmo tempo iconoclasta e catártica. Todo o cortejo, em sua caminhada pela comunidade, desde o festejo da memória dos cavalos mortos, que reconstitui uma história constrangedora, até a queima de fogos e o desfile de bonecos gigantes (representando a diretora da escola, os veterinários, o dono do cavalo e um índio morador de rua), contribui para a criação de um estado festivo e satírico.

“O aspecto de reatualização do mundo é intenso na Folia graças à sua periodicidade e à sua característica de festa que conduz à introspecção e ao transe. A cada festa periódica reencontra-se o mesmo tempo sagrado – aquele que se manifestara na festa do ano precedente ou na festa de um século atrás: é o tempo criado e santificado pelos deuses por ocasião de suas gestas, que são justamente reatualizadas pela festa. Em outras palavras, reencontra-se na festa a primeira aparição do Tempo Sagrado, tal qual ela se efetuou Ab Origine” (Eliade, 1992). Tais considerações nos permitem avaliar a significação de uma manifestação popular como a Festa do Cavalo Nóia, que não teve sua origem num passado longínquo, mas que remete a ele de forma inexorável, dando voz a uma cultura local e revitalizando seu momento histórico, convidando-nos assim a revistar nossos valores.


Hibridismo Cultural - Paradigma para uma Composição Cênica

Quando acompanhamos a Festa do Cavalo Nóia pelas ruas da Vila Missionária nos deparamos com um impressionante exemplo de multiculturalidade. Já na chegada à escola vemos, pendurados como luminárias, baldes que foram trabalhados e perfurados em forma de mandalas para formar lanternas caleidoscópicas. O colorido também é de lei. Ao entrar na escola encontramos pessoas utilizando todo tipo de adereços, como os chapéus produzidos a partir de imagens tropicalistas, ou com imagens de cavalos de brinquedo. Dois estandartes já tremulam nas mãos de jovens entusiasmados, lembrando-nos do carnaval e das folias brasileiras. Outros agitam os bonecos gigantes, certamente herança dos mamulengos nordestinos. Mas o grande momento é a entrada em cena do garoto "vestido" (de modo análogo a um boi-bumbá) no Cavalo Nóia, símbolo central da manifestação.

Nesse ambiente polimórfico entra a figura do mestre de cerimônias, que começa a puxar um maracatu e uma ciranda com os instrumentos de percussão. Estamos prontos para o cortejo, que é precedido de uma queima de fogos. A caminhada pelo bairro também é inesperada: o grupo tem uma trajetória definida, mas pode mudar seu percurso. Ao longo de duas horas, moradores do bairro se aproximam e entram na festa. Depois de um pico, quando o desfile chega a uma loja de pipas, patrocinadora da festa, há mais uma queima de fogos e inicia-se o trajeto de retorno. Entre uma rua e outra vê-se, acentuando o caráter multicultural da manifestação, rodas de ciranda e de capoeira em torno da figura do Cavalo.

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Este jogo de trocas e diversidade nos remete à questão do hibridismo cultural presente na cultura brasileira, e que tem caracterizado boa parte da arte da pós-modernidade. Experiências como happennings, performances, espetáculos transculturais como os de Peter Brook e as pesquisas antropológicas de Eugenio Barba, etc, têm colaborado para a criação de um novo paradigma que, entre outras coisas, reporta à magnífica façanha humana de tornar-se outro, brincar de ser outra coisa, deixar-se cair no desconhecido.

Muitas dessas experiências tiveram inicio com o orientalismo.Não se trata de viver e pensar como oriental, mas de incorporar alguns hábitos ao cotidiano ou à composição estética. Muitos encenadores, ao buscarem nas formas NÔ, Kabuqui, Khatakali, Ópera de Pequim elementos para reformar a arte ocidental, perceberam que esta havia perdido sua essência criativa em favor das reificações da mercadoria. A partir daí, a empreitada reformista foi substituída pela pesquisa, “movimento este que resgata a arte pulsativa, o comportamento dos românticos e a total equiparação entre estatutos da vida e da arte. Procedimento principal da textualização/encenação, a hibridização resulta da intercessão de significações/cenas formando um corpo único sem características de collage” (Cohen, 1998), compondo um todo que deixa de ser um bordado para se tornar unidade.

A noção de hibridismo possibilita, além de tudo, um olhar sobre o meio sócio-cultural de uma determinada civilização, um advento metodológico para a historiografia e para novas disciplinas, como a Etnocenologia e outros estudos transdisciplinares que propõem um olhar horizontal sobre todas as culturas. Hoje já não podemos nos furtar a perceber e assumir as influências que recebemos das mais diversas culturas, que nosso verdadeiro lugar é transnacional, que somos frutos de uma árvore enraizada em Geia.

Crédito da matéria, REVISTA LABORATÓRIO DE POÉTICAS: por William Figueiredo

BIBLIOGRAFIA

BARBA, Eugênio - Além das Ilhas Flutuantes. Tradução de Luis Otávio Burnier. Campinas, Hucitec, 1991.
ELIADE, Mircea - O Sagrado e o Profano. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo, Martins Fontes, 1992.
FLASZEN, Ludwick & POLLASTRELLI, Carla (org) - O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski. Tradução Berenice Raulino. São Paulo, Perspectiva, 2007.
COHEN, Renato - Work in Progress na Cena Contemporânea. São Paulo, Perspectiva, 1998.
LARSEN, Stephen. Imaginação Mítica: a Busca de Significado Através da Mitologia Pessoal. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro, Campus, 1991.
GEERTZ, Clifford. O Saber Local: Novos Ensaios em Antropologia Interpretativa. Tradução de Vera Mello Joscelyne. Petrópolis, Vozes, 1997.

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