Nietzsche e o Cavalo





Na manhã do dia 3 de janeiro passado, o pensador alemão Friedrich Nietzsche, a maior promessa da filosofia européia, saía de sua casa em Turim quando viu o cocheiro espancando seu cavalo. Chocado com a cena de selvageria, o filósofo correu em socorro do animal. Depois de espantar o cocheiro aos berros, Nietzsche passou os braços em redor do pescoço do cavalo e começou a chorar convulsivamente. O choro durou pouco. Acometido por um violento colapso, o filósofo precisou ser carregado para seu quarto, onde permaneceu desacordado por alguns minutos. Quando voltou a si, não era mais o mesmo - pronunciava frases ininteligíveis, cantarolava, martelava o piano e soltava estranhos ruídos. Durante a semana seguinte, Nietzsche não apresentou nenhum sinal de melhora. Foi levado então para a Basiléia, na Suíça, onde se submeteu a vários exames na clínica de nervos da universidade. Diagnóstico: perturbações de origem sifilítica. É num estado lamentável que se encontra hoje o grande filósofo - aquele que anunciou o surgimento do "super-homem" é agora um rebotalho humano.
De saúde precária, que o levou há dez anos a abandonar a Universidade da Basiléia, onde lecionava Filologia, Nietzsche teria adquirido sífilis na juventude, durante uma visita a um bordeI. Transferido da Basiléia para a clínica psiquiátrica da Universidade de Iena, perto de Naumburg, na Alemanha, o filósofo, hoje com 45 anos, realizou ali uma nova bateria de exames com Ottto Binswanger. No final, o médico considerou seu estado irreversível. Nietzsche não lembra nem de longe o pensador polêmico que decretou em 1882 a morte de Deus, no seu desconcertante A Gaia Ciência. Menos ainda o visionário de Assim Falou Zaratustra, de 1885, que prenuncia o aparecimento de um "super-homem" para tomar o lugar do “homem resignado" que o cristianismo consagrou. Um boletim médico recente dá a exata dimensão do estado do filósofo: "Nietzsche pede constantemente ajuda contra terrores noturnos. Nunca sabe onde se encontra. Chama à atenção o fato de que, embora tenha vivido durante muito tempo na Itália, erre com freqüência ao falar o idioma italiano".
É comum vê-Io rabiscar garatujas com lápis vermelho ou azul, quando não está ensaiando cartas incompreensíveis para amigos, príncipes e reis ou chamando o guarda da clínica de Bismarck. Se pudesse ter consciência de que o mundo hoje o dá por louco, é provável que Nietzsche se sentisse lisonjeado. Sua obra dá pistas de um encontro marcado com a loucura. Tanto que em Aurora, de 1881, atribui à insanidade um papel fundamental na história das civilizações. "Para os intelectuais superiores que foram levados a romper convenções e fazer novas leis, não haveria alternativa se não fossem realmente loucos", disse o filósofo. Amigos que o têm visitado na clínica não escondem suas desconfianças de que Nietzsche, por algum estranho mecanismo mental, possa ter "optado" pela loucura. Esta seria uma forma de afirmar, por conta própria, a importância que ele mesmo se atribui. Essas considerações são muito atraentes em elocubrados tratados de filosofia. Na vida real, que é a vivida por Nietzsche hoje, a loucura é uma doença dolorosa, humilhante e sem esperança.
No ano passado, pouco antes de submergir à insanidade, Nietzsche concluiu um novo livro, espécie de memórias filosóficas, ainda inédito, em que sua necessidade de auto-afirmação é patente. Ela já começa no título da obra. Ecce Homo (Eis o Homem). Trata-se de uma alusão à frase com que Pilatos apresentou Cristo aos judeus - o que, automaticamente, atribui uma aura de mártir ao próprio Nietzsche. Os títulos dos capítulos também revelam uma inacreditável auto-estima, ou o prenúncio da doença: "Por que sou tão sábio?" e "Por que escrevo tão bons livros?"
A irmã do filósofo, Elisabeth, viúva de um anti-semita suicida que sonhava construir uma colônia ariana no Paraguai, cogita articular a publicação das obras completas de Nietzsche. Nada de comoção fraternal - ela estaria interessada apenas em colocar a filosofia do irmão a serviço de suas idéias, pois Elisabeth continua tocando o projeto da tal colônia ariana. Se for isso, seu plano está condenado ao fracasso. Foi o anti-semitismo que levou Nietzsche, por exemplo, a romper com seu melhor amigo, o compositor alemão Richard Wagner. Sua filosofia, apontada para o futuro, jamais defendeu posturas tão retrógradas.

20 de novembro de 1889


O sonho de Raskólnikov

(Dostoiévski, Crime e Castigo)
Parecia-lhe então ver o mundo assolado por um flagelo Terrível ... Uns seres microscópicos...introduziam-se nos corpos... Os indivíduos infectados ficavam logo doidos furiosos. Todavia...nunca os homens se julgaram tão sábios, tão seguros da verdade... Nunca tinham tido mais confiança na infalibilidade dos seus juízos, na solidez das conclusões científicas e dos princípios morais. Aldeias, cidades, povos inteiros eram atacados pela doença e perdiam o juízo, não se compreendendo uns aos outros. Cada qual julgava saber, ele só, a verdade inteira ... Ninguém se entendia sobre o bem e o mal, nem sabia quem se havia de condenar ou absolver. Matavam-se uns aos outros levados por uma raiva absurda...Ninguém sabia e todos andavam inquietos. Cada um propunha as suas idéias, as suas reformas e não havia acordo; ... Aqui e ali se reuniam vários grupos, combinavam uma ação comum, juravam não se separar - mas logo depois esqueciam-se da resolução tomada, começavam a acusar-se uns aos outros, a bater-se, a matar-se. Os incêndios e a fome completavam o triste quadro. Homens e coisas, tudo perecia. O flagelo estendia-se cada vez mais. No mundo só podiam salvar-se alguns homens puros, predestinados a refazer a humanidade, a renovar a vida e a purificar a terra; mas ninguém via esses homens; ninguém ouvia as suas palavras e suas vozes.

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